Estudos de Caso I – Terapia Familiar

Família em luto
 
a) Configuração familiar
Esta família era composta por Pilar uma mulher de 50 anos, que se
dedicava à vida doméstica. Seu marido Lúcio, com o qual estava casada há 23
anos, era um militar aposentado de 52 anos. Eles tiveram dois filhos, o mais velho
era Tadeu com 21 anos de idade e o mais novo, Luiz, fazia quatro anos que havia
falecido de câncer.
b) Queixa inicial
Pilar procurou o SPA, indicada pela psicopedagoga do colégio de Tadeu,
quem os orientou a procurar uma psicoterapia de família. Sua queixa inicial
centrava-se no comportamento violento e muito tímido de Tadeu. Devido a seu
comportamento introspectivo, ele ficava muito tempo isolado em seu quarto, tendo
medo de sair de casa; e quando voltava da rua trancava todas as janelas da casa. Os
acessos de raiva são direcionados à mãe e, por isso, Pilar temia por sua segurança.
Ele já foi capaz de jogar objetos pela janela do apartamento, como cadeiras e
colchões. Tadeu era medicado com psicotrópicos receitados pelo psiquiatra, mas a
dosagem ainda não conseguia evitar os acessos de fúria. Pilar solicitava a ajuda da
equipe, pois estava muito preocupada, sem saber como agir com o filho.

c) Descrição do período de avaliação

O processo ocorreu em oito sessões com um psicoterapeuta e um
coterapeuta, durante o período de dois meses e meio. Foi um período de avaliação
extenso devido aos constantes atrasos da família para chegar ao SPA, prejudicando
o tempo da sessão. Cinco entrevistas preliminares foram realizadas, antes da
aplicação do ADF, e a devolução da avaliação ocorreu na sétima e na oitava
sessão, devido à demanda da família para falar sobre os conteúdos originados nas
tarefas do ADF.
Na primeira entrevista, quem compareceu a sessão foram Lúcio e Pilar. O
casal relatou sobre o comportamento do filho, divergindo nas opiniões sobre as
razões de ele ser tímido e agressivo, apresentando dificuldades no colégio, onde
repetiu inúmeras vezes de série. Para a mãe, Tadeu piorou após a morte do irmão
Luiz, e quando era contrariado, tinha os ataques de raiva. Ela já temia repreendê-lo,
pois um dia a ameaçou com uma faca dizendo que a odiava. Lúcio pareceu
minimizar a seriedade destes conflitos, afirmando que a expressão de ódio do filho
era decorrente da adolescência. Não concordava que Tadeu piorou depois da morte
do irmão, porque sempre foi um garoto muito tímido, que não conseguia olhar
diretamente no olho de ninguém.
Na segunda entrevista, o casal veio novamente atrasado, apesar do convite
dos psicoterapeutas para que Tadeu fosse à sessão, eles não o levaram. Nesta
sessão Lúcio revelou um segredo à mulher envolvendo a doença de Luiz. Segundo
ele, o filho mais novo fora diagnosticado com câncer no momento de seu
nascimento, contudo não compartilhou com a mulher esta informação, para que ela
não sofresse. Guardou por oito anos o segredo da doença e Pilar mostrou-se
ressentida por ter sido privada desta informação, impossibilitada de procurar algum
tratamento para o filho.
Na terceira entrevista, o casal chegou ainda mais atrasado em comparação a
sessão anterior, restando somente dez minutos de sessão. Na quarta entrevista,
Pilar apareceu sozinha e alegou não saber o motivo da ausência do marido.
Culpou-o pelos atrasos anteriores, pois ele sempre inventava de ir a um lugar antes
de se dirigirem ao SPA. Foi pontuado que o comportamento resistente do marido
mostrava-se dissonante ao seu constante comportamento participativo no setting.
Pilar afirmou que o marido tinha duas caras, uma na rua e outra em casa. Revelou
que o marido era alcoólatra e quando estava bêbado ficava violento com ela, cenas
de agressão física e verbal que eram presenciadas por Tadeu.
Na quinta entrevista, Tadeu pela primeira vez compareceu, sendo
acompanhado por seus pais. Mostrou-se um jovem muito retraído e com aparência
de um adolescente muito mais novo do que sua real idade. Segundo ele, não sabia a
razão de estarem no SPA, visto que os pais lhe explicaram que eles iriam participar
de uma palestra sobre família.
Na sessão seguinte o ADF foi aplicado, havendo um clima de tensão
familiar durante o atendimento. Conforme já foi mencionado, a devolução ocorreu
em duas sessões posteriores à aplicação do ADF, nas quais se buscou trabalhar
temas latentes que foram explicitados durante a produção dos desenhos e que
mobilizaram intensamente a família. O luto mal elaborado, compartilhado por
todos, e o peso das fantasias, que muitas vezes eram confundidas com a realidade,
foram temas significativos para a família desejar investir em um tratamento
psicoterapêutico com a esperança da melhora na integração familiar.

d) Descrição do sistema

O casal considerava sua história comum a todos os casais. Um ano após se
conhecerem, eles decidiram morar juntos. O pai de Lúcio falecera cerca de oito
meses antes desta união, era um homem que não ajudava muito a mulher com as
questões da casa, sendo ela quem resolvia tudo. A ideia de morarem juntos, não
agradava a mãe de Lúcio, pois com o falecimento do pai, ele passara a ser o
provedor da família. Devido à desaprovação da família de Lúcio, eles fugiram e
foram morar em um bairro distante. Por insistência de Pilar e da família dela,
depois de quatro anos juntos, eles formalizaram a união, pois ela sentia-se como
uma amante, mesmo depois do nascimento de Tadeu. Para Lúcio não havia
necessidade da formalização, porque de acordo com ele, pretendia passar o resto de
sua vida com a mulher.
Porém, o início da união foi conturbado. Lúcio queria continuar com o
estilo de vida de uma pessoa solteira, saindo com os amigos e indo a bares,
deixando Pilar sozinha em casa. Voltava bêbado e falando bobagens, agredindo- a
física e verbalmente. Assim, o relacionamento deles ficou cada vez mais
conturbado, gerando brigas e segredos. O casal não conversava em casa, e segundo
Pilar, o marido a desprezava por ter uma escolaridade superior à dela. Na opinião
de Pilar, Lúcio criou uma vida independente da vida familiar, não avisando para
onde ia, nem quando voltava, sendo igual ao sogro falecido.
Tadeu ficava acordado esperando o pai voltar para casa, e quando via as
agressões ficava nervoso, saindo de casa sem rumo. O filho tinha um bom
relacionamento com o pai, pois este o ajudava a estudar, a perder o medo de sair de
casa e até a olhar para as pessoas diretamente nos olhos. Tadeu só era agressivo
com a mãe quando o pai não estava em casa, implicava com ela remexendo nas
gavetas. Lúcio duvidava da mulher, somente acreditando nos fatos, quando via
objetos quebrados dentro de casa.
A timidez profunda do filho foi explicada, pelos pais, com diferentes
argumentos. Pilar achava que Tadeu era parecido com a família paterna, pois sua
sogra também não olhava para ninguém enquanto falava. Lúcio discordava,
alegando que seus irmãos se abraçavam e demonstravam carinho, ao contrário da
família da mulher. Pilar realmente era mulher com dificuldades de demonstrar sua
afetividade, não tinha o costume de beijar, nem abraçar o filho. Lúcio acusava a
mulher de não dar carinho a Tadeu e de tê-lo prendido demais em casa, afirmando
que ela o mantinha sempre agarrado “em baixo de sua saia”. Em sua opinião,
Tadeu era como se fosse duas pessoas, uma alegre que ouvia música e dançava, e
outra silenciosa, pensativa e retraída.
Tadeu já tinha sido atendido em uma clínica psiquiátrica, onde recebera o
diagnóstico de esquizofrenia, o qual posteriormente foi reformulado pelo fato de
ele ser menos comprometido emocionalmente do que os outros pacientes
esquizofrênicos. Depois, passou por outra clínica, onde fora diagnosticado como
portador de uma timidez profunda. Ele passava por estas avaliações, sem se
incomodar ou questionar. Estes cuidados médicos tomavam um tempo
significativo da vida de mãe e filho.
Constantemente, os pais ressaltavam a diferença entre a personalidade de
Tadeu e de Luiz (o filho falecido). Este último era lembrado como muito diferente
do irmão, pois tinha muitos amigos, era alegre e gostava de compartilhar seus
brinquedos. O nascimento de Tadeu foi descrito como fato que mudou a vida do
casal, pois eram jovens e Pilar teve que abandonar sua profissão para cuidar do
filho. O segundo nascera muitos anos depois do primeiro, após várias tentativas
fracassadas. Quando Pilar desistiu, por já ter mais de quarenta anos, acabou
engravidando. A criação de Luiz fora diferente, porque não admitia mais
interferências, nem conselhos da família.
Luiz, ao nascer, precisou ficar na incubadora durante alguns dias, porque
era muito pequeno e frágil. A partir da versão de Lúcio, os médicos lhe
informaram que o bebê estava doente (com “câncer”) e por isso eles não iram ficar
juntos por algum tempo. O pai recebeu a notícia com desespero, não sabendo qual
decisão deveria tomar. Preferiu não contar para a mulher, por vê-la muito nervosa
diante da hospitalização de Luiz, e assim a preservava de sofrer ainda mais. Com o
tempo, Luiz foi se fortalecendo, ganhando peso, e os sintomas foram
desaparecendo. Tornara-se um menino gordo, robusto, vivo e brincalhão, sendo
admirado por todos. Por sua vez, Lúcio pensou que o médico tinha se equivocado
no diagnóstico, e até se esqueceu da doença do filho.
No entanto, durante os quatro anos de vida de Luiz, parecia que os pais
compartilhavam inconscientemente uma excessiva proteção. Pilar deixava o filho
dormir com ela todas as noites, porque não queria afastar-se dele, para irritação de
Lúcio. Este achava que os irmãos deveriam dormir juntos, porque se algo
acontecesse a um, o outro irmão estaria lá para apoiá-lo. No entanto, Lúcio nunca
havia comprado uma cama para Luiz, não preparando o quarto de Tadeu para
também ser o de Luiz.
Quando a doença se manifestou, Luiz estava com quatro anos de idade, e
rapidamente ficou muito debilitado. Inicialmente procurou um hospital devido à
grave anemia do filho, havendo necessidade de transferi-lo quando foi
diagnosticado com câncer. No segundo hospital, explicaram a gravidade da doença
de Luiz, onde ficou internado durante três meses, voltando dias depois de receber
alta. Durante a internação, Pilar não se sentiu apoiada pelo marido, que pouco
visitava Luiz. Quando o fazia, era por um tempo muito curto, criando motivos para
brigarem e ele ir embora. Lúcio passou a beber mais com a morte do filho na
tentativa de esquecer sua dor. Considerava um peso ter se calado, por tanto tempo,
para preservar a mulher.

e) ADF
Os membros da família quase não se falaram durante a técnica, também
raramente comentaram e olharam para os desenhos uns dos outros. Tadeu, o
paciente identificado, geralmente era o primeiro a iniciar a tarefa e o último a
acabar. Enquanto a mãe era sempre a primeira finalizar seus gráficos. Os desenhos
de Tadeu foram produzidos com traços intensos, coloridos e expressivos. Os
desenhos de Pilar e de Lúcio tinham traços fracos e monocromáticos, além de
apresentarem uma temática estereotipada, com pouca capacidade afetiva e criativa.
Pilar foi quem demonstrou maior resistência, dizendo que não sabia
desenhar e que não faria nada. Também, foi a primeira a escolher o lugar que
ocuparia, em seguida, Lúcio escolheu desenhar distante de Pilar, fazendo com que
Tadeu ficasse sem opção de escolha. “Você não tem opção. Vai ficar com o do
meio”. No entanto, ao se direcionarem para suas respectivas folhas, Tadeu correu
para o lugar desejado pelo pai (longe da mãe), quem aceitou comentando: “ué…
mas, você não tinha escolhido o do meio?”.
Com exceção do último desenho, os demais trabalhos gráficos de Pilar
foram monocromáticos, empobrecidos de criatividade e de afetividade. Os
desenhos de Lúcio, de modo geral, foram estereotipados, monocromáticos e pouco
inteligíveis, apresentaram pouca capacidade criativa. Contudo, seus desenhos
foram significantes em suas mensagens latentes, denunciando o conflito de Lúcio
que ao mesmo tempo buscava se expressar, mas tinha uma imensa dificuldade em
fazê-lo, e quando o fazia era com agressividade. Os desenhos de Tadeu, ao
contrário dos pais, foram expressivos, coloridos, com traços fortes e intensos.

– Primeiro Desenho livre
Pilar desenhou, “Minha casa”, uma casa sem muitos detalhes, apenas com
uma pequena porta em seu canto direito, embaixo da qual havia uma escada. O
trabalho de Lúcio foi intitulado de “União”, o qual correspondia a uma cena de
refeição, onde pessoas com estrutura corporal desintegrada e pouco desenvolvida
apareciam em volta de uma mesa comendo. Disse gostar muito de reunir a família,
pois fora criado desta forma. Ao ser questionado sobre a identificação da quarta
pessoa presente na “união”, afirmou que era qualquer outro membro de sua
família, “que é maior, do que apenas nós três aqui na sessão”. Tadeu fez a
bandeira do Brasil, incluindo as palavras “ordem e progresso”, denominando-o de
“Brasil”. A bandeira possui um mastro do lado esquerdo e está centralizada na
metade superior da folha.

 

 

  • Família abstrata
    Pilar apresentou muita resistência, demonstrando claramente sua pouca
    motivação para começar esta tarefa. Representou-se como um coração, o marido
    como uma pipa, porque, segundo ela, ele gostava de se soltar igual a uma pipa.
    Ressaltou que a pipa também parecia um balão que vai e vem. O filho foi
    representado por uma bola, cujo centro parece haver um buraco. Lúcio representou
    sua mulher como um ser estranho, parecendo um réptil. Explicou que era um
    camaleão, não porque era um bicho que se transformava, mas por possuir
    características de tranquilidade, quietude e capacidade de observação. Representou
    seu filho e a si mesmo como uma árvore, porém cada um foi criado num formato
    diferente, ressaltando a diferença entre eles. Afirmou que o filho era mais jovem e
    se movimentava mais com o vento, ao contrário dele, que era mais sólido e velho.
    Tadeu, em sua produção, escreveu o título “Nascimento de um menino”,
    desenhando um homem barbudo, expressivo e de braços abertos em cima de um
    morro. Disse que era o Cristo Redentor, porque tinha nascido na cidade do Rio de
    Janeiro. Ao lado do Cristo colocou uma seta que apontava para a palavra “viveu”,
    simbolizando a dualidade de vida e morte presente nas fantasias da família. Tadeu
    esclareceu que seu desenho representava todos os membros familiares, porque
    todos eram cariocas. Afirmou que o Cristo representava tudo concentrado: “É um
    sentimento muito grande”.

 

 

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