Estudo de Caso II – Terapia Familiar
Família segredo
a) Configuração familiar Esta família era composta por Pedro um homem de 37 anos, casado há mais de dez anos com Helena, uma mulher de 25 anos. Nesta família, o filho mais velho de Pedro de 12 anos, Daniel, nascido de seu primeiro casamento, era criado por parentes próximos, devido a sua conflituosa relação com Helena. Mas, apesar de não morar na casa do pai, convivia muito com este último e com os irmãos. O filho do meio, Pedro Filho, tinha 10 anos de idade e provinha de uma relação extraconjugal de Pedro, o segredo manifestado na queixa envolvia a origem deste filho. Por fim, o filho caçula de 6 anos, Renato, era filho biológico do casal Pedro e Helena.
b) Queixa inicial A queixa inicial enfocava no pedido de ajuda para efetuar a revelação de um segredo relativo aos vínculos parentais com Pedro Filho, tendo em vista que o menino era apenas filho consangüíneo do Pedro, e não sabia “nada” sobre sua verdadeira origem. A manutenção deste segredo estava provocando desavenças entre os cônjuges, e entre a Helena e os filhos, gerando a sensação de enfraquecimento dos vínculos e o temor de desagregação familiar. Pedro foi quem procurou o SPA, deixando seu telefone para que a Equipe de Família e Casal entrasse em contato. Já no telefonema, para marcar a primeira entrevista, mostrou-se apreensivo com a situação familiar e informou sobre o difícil temperamento da mulher. Ele mencionou sobre sua vontade de contar “o segredo”, principalmente, após a descoberta de seu filho Daniel ao ouvir uma discussão do casal sobre o assunto. Contudo, o pai não conseguia fazê-lo e procurava ajuda, temendo os efeitos da revelação do segredo, acreditando que a mulher, Helena, mantinha um tratamento diferenciado em relação a Pedro Filho.
Em todos os casos descritos, os nomes foram substituídos, assim como alguns detalhes secundários a história também foram modificados, para que as identidades das famílias fossem preservadas.
Descrição do sistema A história de origem de Pedro centra-se no fato de não ter conhecido seu pai, e nem ter convivido muito com sua mãe, posto que ela falecera quando ele tinha apenas oito anos de idade, deixando, além dele, seus outros três filhos órfãos. Pedro morou por um período com uma tia, e depois foi para um orfanato, onde viveu até seus 14 anos. Quanto a Helena, ela viveu com os pais e uma meia-irmã, proveniente do primeiro casamento de seu pai. Sentia-se preterida pela mãe e sofria muito com o tratamento recebido da mesma. Apesar de ela ser sua “filha legítima”, acreditava que sua mãe privilegiava e protegia mais sua meia-irmã, não tendo a mesma relação afetiva com as duas. Os dois se conheceram, quando Helena era ainda adolescente, havendo uma diferença de idade significativa na época, pois ele já era um jovem adulto, com um filho recém nascido de seu primeiro casamento. O casal namorou por um período curto de tempo, decidindo rapidamente morarem juntos. Após uma breve separação, fato contestado por Helena, Pedro teve um encontro com outra mulher, com a qual gerou Pedro Filho. Este processo de gravidez permaneceu encoberto durante as entrevistas, não ficando claro para os psicoterapeutas se era, ou não, resultado de uma traição. Nesta parte da história familiar os membros do casal não se entendiam com os fatos e discordavam entre si de maneira irritada. Pedro afirmou ter revelado a Helena sobre a gravidez quando reataram, porém ela disse ter tomado conhecimento somente no dia do nascimento da criança. Segundo ela, ele a avisou somente quando estava a caminho da maternidade, chocando-a com a revelação. A mãe biológica de Pedro Filho, o entregou com um mês de nascido para o pai criar, mudando-se sem avisar seu destino. Desde este dia, nunca mais a encontraram, nem souberam notícias. Pedro, com medo de que a mãe biológica reaparecesse, providenciou a guarda definitiva do filho. Helena queria contar para o filho socio-afetivo sobre a verdade de sua origem, mas o casal sempre adiava a revelação esperando o momento mais propício. E assim, passaram-se 10 anos sem revelar a “verdade”. O pai tinha o medo manifesto de que o filho se revoltasse contra Helena, embasando seu temor na crença de que sua mulher o tratava de modo diferenciado, punindo-o mais frequentemente do que Renato, o filho biológico do casal. Pedro também sentia um forte sentimento de culpa, desencadeado por seu dilema de revelar ou ocultar o segredo, responsabilizando-se por este conflito. A mulher discordava sobre a desigualdade alegada pelo marido, pois tinha criado o menino desde bebê e afirmava: “não os trato sempre de forma diferente”. Porém, temia que a “mãe verdadeira” dele aparecesse, querendo levá-lo embora. Ela também, ao contrário do marido, acreditava que de alguma maneira o filho já sabia alguma coisa sobre o segredo. Outro ponto importante exposto foi o conflituoso relacionamento de Helena com Daniel, o filho mais velho de Pedro. No entanto, as razões dos intensos desentendimentos entre eles não eram faladas por ela, que evitava o assunto, justificando que: “Esse é um assunto de casa”. O pai apenas comentou que Daniel estava proibido de entrar em casa na sua ausência. Os três irmãos demonstravam nas entrevistas um intenso entrosamento e muita cumplicidade. Conheciam e comentavam o que cada um gostava de fazer e brincar no dia-a-dia. Era claramente perceptível, no aqui e agora do setting, a integração fraterna que relatavam. Observou-se que entre eles os afetos circulavam de forma lúdica e amistosa, contrariando os argumentos de Helena que supervalorizava as brigas entre eles, e sentia dificuldade em impor regras e limites. A dinâmica geral da família girava em torno de uma rede de segredos sobrepostos, a partir de uma série de não-ditos que afetavam as interações e os vínculos familiares. Havia também a presença de subsistemas bem delimitados e que representava o jogo rígido de inclusão-exclusão, como Renato e o pai, que sempre se sentavam próximos e cochichavam na sessão. Pedro Filho sentava-se nas sessões ao lado de Helena, apresentando um comportamento retraído ao esconder, na maior parte do tempo, seu rosto com as mãos. Quanto a Daniel, ignorava a presença da madrasta, não falando com a mesma em nenhum momento do processo, tendo mostrado também ser um menino inteligente.
e) ADF As posições ocupadas pelos familiares foram muito semelhantes:
Pedro Filho ao lado da mãe, o mais jovem ao lado do pai, e o mais velho próximo à porta. Esta configuração da ocupação do espaço físico apontava para as alianças e para as identificações familiares. O pai recusou-se a realizar a tarefa após perguntar se somente as crianças desenhariam. Explicitou seu posicionamento de auto-exclusão dizendo: “Tá bom crianças, fiquem a vontade que eu vou ficar aqui sentado, apreciando o desenho de vocês”. O manejo técnico dos psicoterapeutas para lidar com esta situação, foi respeitar a decisão dele, mas ressaltando a importância de sua participação. Além disso, a cada finalização de tarefa, eles trocavam a folha em branco de Pedro, fazendo a partir deste gesto um novo convite não-verbal de inclusão. Os outros membros da família se implicaram nas tarefas gráficas, permanecendo na maior parte do tempo calados, sem nem mesmo olharem espontaneamente para os desenhos dos demais. Quando incentivados pelos psicoterapeutas a comentarem sobre as criações de cada um, diziam monossilabicamente: “legal”, “maneiro”, “gostei”, “bom”, “engraçado”. O desenho da Família abstrata foi a tarefa, em que apresentaram mais dificuldades de compreensão.
Os desenhos de Helena, de modo geral, eram compostos por traços infantis, mas que indicavam afetividade intensa. Seus traços eram firmes, sem ser agressivos, havendo uma variedade no uso das cores. Seus conteúdos eram inteligíveis e integrados. Demorou mais do que os demais membros para a realização das tarefas e se restringiu a comentá-los somente quando incentivada pelos psicoterapeutas. Pedro Filho apresentou, de modo geral, traços fracos e conteúdos um pouco disformes. Os desenhos de Daniel foram criativos, mostrando plasticidade e riqueza no uso das cores. Também, apresentaram-se bem integrados, inteligíveis e com capacidade de abstração. O filho mais novo, Renato, ao longo das tarefas foi quem mais falou e interagiu com todos. Falava muito com o irmão do meio, ora cochichando ora para todos ouvirem. Mostrava interesse nas criações dos demais, perguntando e questionando-as. Demonstrou sua forte aliança com o pai, ao pedir constantemente auxílio para a elaboração dos desenhos, parecendo incluí-lo na tarefa coletiva. Além disso, recorrentemente ressaltava, com seus comentários, a falta e a auto exclusão do pai, perguntando de quem era a folha em branco, por exemplo.
– Primeiro Desenho livre Helena fez uma paisagem rica, com uma enorme árvore cheia de frutos cercada por quatro flores. Pedro Filho desenhou um fantasma, de olhos vazados e com os braços sem mãos, chamado de “O menino maluquinho do espaço”. O Desenho livre de Daniel foi intitulado de “A estrela que me guia”, no qual fez uma estrela amarela, cuja forma lembrava a figura rosa-dos-ventos, a qual simboliza a somatória de todos os pontos cardeais. Renato desenvolveu um desenho colorido e criativo, no qual desenhou um triângulo preenchido de cores variadas, descrevendo-o como uma árvore de Natal.
– Retrato da família Helena se desenhou de forma infantil ao lado do marido, incluindo no desenho denominado “Minha família”, apenas Pedro Filho e Renato (Daniel foi excluído). No entanto, em dissociação com o desenho, quando fora explicá-lo para os outros falou: “Eu desenhei os meus quatro”. Pedro filho representou os cinco membros do grupo com uma estrutura corporal que lembrava também extraterrestres. Todos tinham a cabeça e os olhos grandes, com corpos pequenos e finos. A mãe era a única que parecia falar, cujo discurso estava representado dentro de um balão: “feliz a estrela”. Daniel fez o pai, a mãe biológica, tios e primos, excluindo Helena do desenho, o qual chamou de “Minha família”. Renato teve dificuldade para entender se deveria se incluir a si mesmo no desenho, e por isso desenvolveu um extenso diálogo com o pai sobre a possibilidade de se incluir, ou não, no retrato. De alguma forma, ele enunciava a questão de inclusão/exclusão, possivelmente expressando o posicionamento ambivalente do pai na família. Como desenho, desta segunda tarefa, decidiu fazer um boneco, que disse ser seu pai. Nesta tarefa o jogo inclusão exclusão ficou ainda mais claro, assim como os conflitos e alianças. – Família abstrata Helena desenhou seus sete cachorros e um enorme avião, dizendo que era para eles viajarem. Teve dificuldade em criar um título neste desenho, recebendo algumas sugestões dos filhos. Após certa demora, o intitulou de “Meus canis”. Este desenho foi o mais integrado de Pedro Filho, que representou a Família Abstrata como Helena – evidenciando sua forte vinculação com a “Mãe Coruja” (título do desenho). Desenhou-a de maneira colorida e sorridente, preenchendo todo o papel com sua figura. Os olhos de Helena são significantes, na medida em que são expressivos e preenchidos, diferentes dos olhos do fantasma “O menino maluquinho do espaço”. Daniel representou sua mãe como se ela estivesse se apresentando, pois próximo a sua boca havia um balão com a frase: “Eu sou a R. mãe do Daniel”. Além disso, desenhou-a com traços muito fortes: no rosto seus traços são intensos e grandes, seu corpo vai até o busto, aparentando estar despida. Denominou este terceiro desenho de “My mãe”. Por meio do mesmo, ele manifestou seu vínculo com sua mãe biológica, que morava em cidade distante, mas com quem mantinha permanente contato por cartas ou por telefonemas. Renato, nesta tarefa, novamente denunciou algum aspecto do pai, elegendo o como única figura a ser desenhada e preocupando-se em representar os detalhes do rosto do pai, não sabendo, por exemplo, como desenhar a parte branca interna do olho. “Eu queria desenhar… eu queria desenhar o rosto do meu pai… só que é muito difícil…”. Parecia que desejava preencher o vazio, o branco do pai, da face de Pedro.
– Rabisco individual Helena criou um arco-íris grande e colorido, com traços bem intensos. Pedro Filho fez um círculo e denominou-o de terra, também fez vários rabiscos em amarelo e em vermelho, mas com traços fracos. Sobre este desenho comentou: “já que eu fiz uma bola, aí eu fiz um rabisco assim, aí eu pensei é uma bola de fogo”. Intitulou o desenho de “Bola de fogo”, riscando a palavra “super” que estava escrita antes de bola. Nesta quarta tarefa, Daniel desenvolveu um furacão, intitulado de “Furacão Catrina”, dizendo ter sido inspirado nos “… acontecimentos, né… os furacões…”. Renato desenhou um arco-íris e um ser que lembra o personagem Mickey Mouse da Walt Disney. Destaca-se, que a forma do arco-íris apareceu nos desenhos de Helena e de Pedro Filho, neste último, relatado como uma bola de fogo.
– Rabisco em conjunto O rabisco escolhido para fazerem o Rabisco em conjunto, por Pedro Filho e Daniel, foi desenvolvido pelo primeiro irmão. Também escolheram juntos qual seria o título, “A pipa mágica”. Helena participou timidamente na produção do desenho, incluindo detalhes que expressavam sua afetividade, como corações no canto da folha. Ela não conversou com Daniel, nem ele com ela, havendo uma negação mútua da presença um do outro. Contudo, Renato apresentou um comportamento diferente daquele ativo e interessado que vinha tendo. Ficou impaciente e irritadiço, de repente, recusandose a participar. Foi estimulado pelo pai a desenhar conjuntamente, mas apenas fez um rabisco e voltou a se sentar no sofá.
– Segundo Desenho livre Nesta etapa Helena desenhou “Minha casa”, uma casa colorida que demonstra ter vida interna, ilustrada pela chaminé, mas que parecia estar enquadrada, a partir de duas retas paralelas nas extremidades da casa. Pedro Filho deu a seu desenho o título de “Os super molenga”, onde aparecem seres mal delimitados e diferentes, aludindo ao espaço sideral e a extraterrestres. Apesar da pouca inteligibilidade e integração do desenho, ele elaborou uma rica descrição do mesmo, relatando que “Os super molenga” eram super heróis bobões e que os tinha inventado. Daniel desenhou um menino de corpo inteiro, com a boca aberta e sorridente, abaixo do lábio superior há apenas um dente preto e ao lado de seus pés também há uma bola. Este último Desenho livre foi chamado de “Eu tenho um dente só”. Por fim, a mudança de comportamento de Renato, na tarefa anterior, pôde ser ilustrada no último desenho, que em comparação com o primeiro Desenho livre, foi menos criativo e desenvolvido. Fez apenas uma pequena mão aberta e monocromática. Alegou ter escolhido este desenho, porque seu pai havia mandado.
f) Devolução Na sessão de devolução, como já foi mencionado, somente o pai compareceu. Pedro comentou que Helena recusou-se a vir e impediu os filhos de participarem, argumentando que psicólogo não iria resolver sua vida. Atitude da mulher que foi aceita por Pedro, quem na primeira entrevista mostrou-se centralizador e autoritário ao desejar entrar sozinho para a sessão. No relatório dos psicoterapeutas, eles enfatizaram que a época desta avaliação foi próxima ao encerramento das atividades acadêmicas da universidade. Houve uma interrupção entre a sessão de aplicação do ADF e a sessão de devolução de avaliação. Essa interrupção, somada às dificuldades familiares para agendar as sessões, constituíram-se como obstáculos no processo de avaliação familiar. Os psicoterapeutas consideraram a possibilidade de estes fatores terem comprometido a continuidade do tratamento, e intensificado a resistência familiar que já existia. Na devolução, Pedro mostrou-se muito cansado e desanimado com a mulher, dizendo que a cada dia ela tratava pior o Daniel. Contou que ela não mudou em nada, pois continuava insultando o menino, e tratando-o diferentemente. Afirmou que o menino fazia reclamações dela, não sabendo mais o que fazer para ajudá-la. Falou do peso de guardar o segredo e prometeu revelá-lo no final de semana. “Vou pegar o garoto, levá-lo para passear e contar, pois já não aguento mais”. Justificou não ter feito isto antes, devido a sua falta de tempo.
Os psicoterapeutas buscaram atenuar o peso das fantasias de Pedro em torno da revelação do segredo, observando, também, que muitos dos medos estavam relacionados à projeção de conflitos da relação conjugal. Questionaram as representações simbólicas de Pedro sobre o que legitima “ser pai” e “ser mãe”. Valorizaram o investimento afetivo de Helena em Pedro Filho, acolhendo-o quando bebê, sendo representada por ele como “mãe coruja”. Trabalharam a supervalorização familiar dos laços consanguíneos, que consequentemente desqualificava a relação sócio afetiva de mãe e filho.